Reconhecer os vários tipos de violência contra a mulher é o primeiro passo para punir os responsáveis e, melhor, combater a desigualdade de gênero como um traço da nossa cultura. Há dois anos, em seu discurso do Dia Internacional da Mulher, a presidenta afastada Dilma Rousseff sancionou a lei nº 13.104/2015, que tipifica o crime de feminicídio. Ele acontece quando fica provado que homicídio foi cometido "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino". Violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher, quando resultam em morte da vítima, configuram o crime.
O feminicídio pode resultar de abusos emocional, físico e sexual. Para a Organização Mundial da Saúde, o crime consiste em "assassinato intencional de mulheres apenas por serem mulheres". Ainda segundo a OMS, a taxa de feminicídio no Brasil é de 4,8 para 100 mil mulheres, a quinta maior do mundo. Antes de nós, México, Chile e Argentina e mais 12 países latino-americanos haviam incorporado o crime em sua legislação.
Criada pela Unidade Politécnica de Gestão com Perspectiva de Gênero, no México, o violentômetro é uma ferramenta bacana para identificar abusos contra a mulher, antes que culminem em agressão física ou mesmo morte. Ele já replicado por instituições em todo o mundo para promover a conscientização e a defesa da mulher.
Como em outros tipos de homicídio qualificado, a pena para o feminicídio varia de 12 a 30 anos de prisão e pode aumentar em um terço se o crime for cometido durante a gestação, nos três meses após o parto, se for contra menores de 14 anos e maiores de 60 ou portadora de deficiência e na presença de descendente ou ascendente da vítima.
Durante a elaboração do projeto de lei, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher apresentou dados assustadores sobre as mortes femininas: entre 2000 e 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, 40% delas dentro de suas casas.
Entre as mulheres negras, o cenário pode ser ainda pior: em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios entre o público feminino, divulgado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), revelou que o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54% (passando de 1.864 para 2.875) e o de brancas caiu 9,8% (1.747 para 1.576), entre 2003 e 2013. O mesmo estudo constatou que um terço dos feminicídios são cometidos por parceiros ou ex-parceiros das vítimas. Um levantamento do Disque Denúncia (180) concluiu ainda que 72% dos agressores denunciados são parceiros ou ex, sendo que em quase 30% dos relatos percebe-se risco de morte – os dados mais recentes são de 2015. Ainda não existem números atualizados depois que a lei entrou em vigor.
Feminicídio: o que mudou depois da lei
Depois da criação da lei que tipifica o crime de feminicídio, o ONU Mulheres Brasil, em parceria com o governo federal, criou, há um ano, as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios. O documento-piloto, lançado no Brasil, traz recomendações de procedimentos para os sistemas de investigação, saúde e justiça para que lidem de forma adequada com as ocorrências. Nele são detalhadas ainda as motivações baseadas no gênero que podem estar por trás da violência, como sentimento de posse sobre a mulher e seu corpo, limitação da emancipação socioeconômica e intelectual e tratamento como objeto sexual, por exemplo. Segundo a advogada Alice Bianchini, membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB quando a lei foi aprovada, as diretrizes foram um grande avanço. "Ainda não é possível avaliar quantitativamente o impacto da nova lei, mas ela certamente trouxe luz à discussão sobre violência contra a mulher", completa.
Fizemos uma entrevista com ela, olha só.
Como o assassinato de mulheres por motivos de gênero era tratado legalmente antes de ser considerado homicídio qualificado?
Muitas vezes, motivos como "ciúme" e "amar demais" não eram considerados qualificadores do homicídio ou podiam até amenizar a visão que o júri tinha do réu. Também poderia haver divergências ao qualificar o crime (se era motivo torpe ou fútil, por exemplo) ou mesmo classificá-lo como homicídio simples. Em caso de homicídio simples a pena é de 6 a 20 anos de prisão, no homicídio qualificado ela sobe para 12 a 30 anos.
Qual é importância de tipificar o feminicídio?
Primeiramente é buscar a justiça em casos concretos, ou seja, quando a morte já aconteceu. Há quem pense que a nova lei vai inibir criminosos, mas não costuma ser assim: em geral, o réu não pensa na pena antes de cometer o assassinato. O outro benefício é dar visibilidade à violência de gênero, fazendo com que ela seja considerada no inquérito policial, pelas partes envolvidas, seja a família da vítima ou do réu, e dentro das universidades de Direito.
Na sua opinião, como as pessoas enxergam o crime de feminicídio?
Vai demorar um pouco para a sociedade olhar os efeitos da lei e a importância de qualificar esse tipo de crime, já que é algo recente e ainda não há pesquisas quantitativas. Parte da mídia também faz um desserviço quando noticia o feminicídio sem falar sobre a motivação do réu e das especificidades da lei. Lembrando: é preciso haver violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição da mulher para configurar o crime. A mulher que morre em um assalto não será vítima de feminicídio. É preciso informar corretamente, ainda mais nesse começo.
Como se defender em casos de violência doméstica e prevenir ocorrências mais graves?
As Delegacias da Mulher, embora nem sempre em número e padrão de tratamento adequados, as defensorias públicas e o Ministério Público estão preparados para lidar com esse tipo de ocorrência. Como ferramenta de prevenção, a Lei da Maria da Penha é eficaz ao estabelecer medidas protetivas de urgência às vitimas. Também sugiro ficar atenta ao violentômetro [no quadro acima], já que sabemos que pequenas ofensas do parceiro podem culminar em violência grave. [Dá uma olhada nesses sinais de que você pode estar em um relacionamento abusivo.]
Dá uma olhada nesse álbum
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