Apesar de ser bastante lembrada por aqui pelo papel que desempenhou até ano passado – o de esposa do cônsul da França no Brasil, Damien Loras –, Alexandra Baldeh Loras, 40 anos, está distante de se resumir a ele. Filha de mãe francesa e pai gambiano, a mestra em Gestão de Mídia pela Sciences Po, uma das mais renomadas escolas de Ciências Políticas do mundo, fundou o Fórum Protagonismo Feminino, que incentiva o empoderamento feminino, dá consultoria a empresas e organiza palestras sobre raça, gênero e diversidade. Seu blog, alexandraloras.com, fala sobre dignidade negra e conta também com dicas de moda, outro assunto em que ela é expert.
Depois de deixar a residência oficial do Cônsul, a família resolveu ficar no Brasil, país onde Alexandra conta "ter reencontrado sua autoestima". Ela também é autora de livros, o mais recente Gênios da Humanidade: Ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente, lançado este ano pela editora DBA. A publicação reúne a trajetória de homens e mulheres africanos e afrodescendentes com contribuições relevantes para ciência, ainda que a maioria não tenha sido reconhecida à altura por elas.
A seguir, ela conversou com a gente sobre o livro, sua paixão pelo Brasil e questões como o racismo.
Qual foi sua maior descoberta durante a apuração do livro?
Soube que negros inventaram a geladeira, o marcapasso, antena parabólica, o celular... Descobri isso durante minhas pesquisas para o mestrado, o que mexeu muito comigo. Estava em uma das melhores escolas do Ciências Políticas do mundo, e também me vi como uma pessoa única ali. Percebi o quanto o eurocentrismo apagou a dignidade, a intelectualidade e a genialidade dos negros. Não há pessoas melhores que outras, o problema da nossa sociedade é que ela só incentiva e conta belas histórias de sucesso, de princesas, com protagonistas brancos. Mas, hoje, com a interação digital e a procura de um mundo mais justo, não dá mais para só incentivar apenas um povo descendente da Europa, com privilégios herdados da colonização e da escravidão.
Quais as personagens reunidas no livro a fascinaram particularmente?
Uma das trajetórias que mais me inspirou foi a da primeira mulher milionária do mundo como mulher de negócios, Sarah Breedlove Walker. Ela inventou produtos para lavar o cabelo, vendia e porta em porta e inventou em sistema de vendas piramidal usados por marcas como Avon e Tupperware. Órfã desde os 8 anos e viúva desde os 20, chegou a ter uma fábrica com 3 mil funcionários e outros tantos fazendo demonstrações nas casas de clientes. Outra personagem incrível é Toni Morrison, primeira mulher negra a receber um Prêmio Nobel, e não era da Paz, mas de Literatura.
De que forma a situação para pesquisadores e cientistas negros é pior para as mulheres?
Houve uma época em que a lei proibia patentes em nome de mulheres. Então muitas coisas foram inventadas e creditadas a maridos e patrões, por exemplo. Isso faz com que a pesquisa do livro também seja apenas uma camada da realidade.
Você já falou sobre isso em outras entrevistas mas, agora, diante da crise institucional no Brasil e do crescimento dos discursos de ódio, o que a faz permanecer no país?
Escolhemos ficar porque o país mexeu muito conosco. Acho que, de certa forma, o Brasil é como uma adolescente rebelde, na qual eu vejo liberdade de expressão, espaço de fala. Diria que realmente o Brasil me ajudou a resgatar minha autoestima. Os brasileiros me deram admiração, respeito e dignidade. Apesar de ser um país racista, parece que está disposto a se olhar no espelho, a encarar o monstro e a escutar a crítica de uma gringa, que talvez possa agregar valor a reflexões que a sociedade precisa se perguntar. Essa diversidade faz com que valha a pena ficar, valha a pena participar de uma obra em construção e desenvolvê-la. Eu vejo o brasileiro como mais aberto ao diálogo que o europeu e vejo uma inteligência emocional que faz com ele tenha mais simpatia, compaixão.
Se hoje temos problemas com a palavra cota, talvez seja a hora de mudar para meta, já que a meta é ter 52% de mulheres e de negros no Congresso, no Senado, nos cargos executivos, nas novelas... Depois disso poderemos falar de democracia racial, de meritocracia e de um reequilíbrio da sociedade. Não podemos manter uma narrativa machista, eurocêntrica e racista. Não foi suficiente ter assinado uma Lei Áurea, precisamos reparar um passado de 400 anos em que a vida dos negros não importou. Também é tempo enxergar que o genocídio que está acontecendo no Brasil, com milhões de negros mortos a cada ano. Se bandido bom é bandido morto, até onde um negro bom é um negro morto? Quando se mata um negro, a primeira coisa que pensamos é que ele era bandido e não uma pessoa respeitável e inocente morta por racismo. Precisamos mesmo cutucar a ferida e reinventar a sociedade que queremos ver.
Esse contexto sócio-político pode levar ao aumento do racismo e da discriminação?
O racismo é uma coisa global, só que no Brasil é pior porque os negros são maioria. O Brasil foi construído por negros, só que a História não conta isso. Cada estrada, cada igreja, cada edifício foi construído por negros. São Paulo, por exemplo, é a cidade mais negra do mundo em números absolutos. Não é Salvador, que tem 80% de negros. São Paulo tem 40%, mas em um universo de 25 milhões de pessoas! Mas acontece que as pessoas que vivem no Jardim Europa não se dão conta que é verdade, porque não pegam ônibus ou metrô.
Quando você se descobriu feminista?
Eu já estava no Brasil, quando a Deb Xavier [embaixadora da ONU pelos direitos das mulheres e idealizadora do Jogo de Damas, que atua pelo empoderamento feminino] me convidou para palestrar em Porto Alegre. E ela me contou que a mãe dela perguntou "por que você está convidando a esposa de alguém, uma consulesa, e não é uma empreendedora?" Ela respondeu: "Olha, mãe, em um jogo de xadrez, as duas peças femininas são a torre e a rainha, que consegue se mover muito mais que o rei. A consulesa todo mundo sabe quem é, mas quem conhece o cônsul geral da França? Ela usou seu espaço e status para trabalhar com questões sociais, como a dos refugiados e a das crianças nas favelas." Isso me ajudou a enxergar meu poder. Eu fazia essas ações de maneira orgânica, mas não tinha me dado conta de que deixava meu marido levar meu filho à escola de manhã, porque também é o papel dele. Me dei conta de quanto o Brasil agregou valor à minha vida, de quanto feministas como Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro me ajudaram muito mais que Simone de Beauvoir ou Frida Kahlo.
Quais foram as maiores conquistas da mulher brasileira recentemente? E o que ainda há de importante a conquistar?
Acho que a mulher brasileira enxerga seu potencial e seu talento e tem capacidade de se unir, por meio de grupos no Facebook, como o das negras empoderadas, com 5 mil pessoas, e campanhas, como a He for She. Está acontecendo um tsunami de feminismo no Brasil. E com modernidade, o que é muito estimulante. Eu nunca vi tantas ações, em nenhum outro país, como o Dia da Internacional da Mulher desse ano e a pauta não fica só nessa data.
Outro fenômeno interessante é como a geração jovem faz uso da narrativa digital e visual, seja por meio do Pinterest, do Facebook, do grafite... E também é uma flexibilidade social, com participação das mulheres mais pobres às da elite. É fenomenal, me inspira, porque eu faço parte de todas essas turmas. Também por isso vale a pena ficar no Brasil, eu não tenho esse tipo de rede na França. Lá as intelectuais falam, mas de uma maneira mais séria, sem circulação de conteúdo. Eu acho que lá você precisa entrar na militância já educada.
Essa mudança dentro das revistas femininas também é superimportante, já que algumas têm colocado a mulher negra em uma posição hype, cool e fashionista, seja com o cabelo crespo ou alisado.
Não são só o governo ou as cotas que vão dar essa nova perspectiva, tem que vir de cada pessoa. Refletir sobre nós mesmas, para nos dar nossa melhor versão e saber que podemos melhorar a cada dia. São em encontros com pessoas diferentes que abrimos o debate e nossos horizontes.
Não vai embora, não!
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