Mães que amamentam seus filhos em livre demanda, que optaram por amamentação exclusiva até os seis meses de vida e por no mínimo dois anos, recomendação oficial da Organização Mundial da Saúde, ao levarem seus bebês ao odontopediatra e escutarem que amamentar dá cárie, que se vocês continuarem amamentando à noite seus bebês terão cárie e que vocês devem desmamar seus filhos urgentemente, se tranquilizem: leite materno não dá cárie. A responsabilidade não será do leite materno, probiótico e rico em anticorpos, mas de outros fatores que propiciam o desenvolvimento de cárie em bebês tais como o uso de bicos artificiais, maus hábitos alimentares na primeira infância e má higiene bucal - e desinformação do profissional de saúde que está sugerindo recomendações sem embasamento atualizado.
O primeiro passo é entender como funciona a dentição. Sabe-se que a maioria dos bebês começará a ter dentes a partir dos seis meses, quando o bebê atinge a maturidade do sistema gástrico-digestivo, com grande variação de tempo. De acordo com Maria Caroline Bezerra Magalhães Marques (DF), 38, odontóloga e mãe de André, de dois anos e dez meses, algumas crianças já nascem com dentes e outras podem demorar até 18 meses para que o primeiro dente erupcione. Segundo ela, existe também uma sequência mais comum para que ocorra a erupção, mas nem sempre a dentição das crianças segue essa sequência, e isso não deve preocupar muito os pais - normalmente, quando os primeiros dentes demoram um pouco mais para erupcionar, pode significar que vários dentes podem vir de uma só vez. A dentição decídua, de leite, se completa até os 36 meses de vida, ou seja, até os três anos de idade da criança. Se após esse período a criança ainda não apresentar 20 dentinhos ao todo na boca, a recomendação é que procure um odontopediatra para avaliar possíveis retenções ou agenesias (dentes que não se formaram).
O segundo passo? Compreender como se forma a cárie, vilã da saúde bucal. Após a erupção, os dentes são naturalmente recobertos por uma biopelícula que se forma com a adesão de proteínas e glicoproteínas salivares e do fluido gengival na superfície dentária. Maria Caroline explica que essa camada fina forma a base para adesão de microrganismos, os quais, sob certas condições, desenvolve a famosa placa bacteriana. “A placa bacteriana alimenta-se principalmente do açúcar que ingerimos com os alimentos e, quando não é removida periodicamente, desenvolve-se. Como resultado da metabolização (digestão) do açúcar, a placa bacteriana produz ácidos com redução do pH bucal, o que destrói os dentes”.
O que o leite materno tem a ver com as cáries, então? O fato de que mães que amamentam e levam seus filhos ao dentista pela primeira vez costumeiramente escutam que o leite materno propiciou a cárie, já que, principalmente em livre demanda, o leite não é ministrado no esquema refeição e escovação, criando o cenário da placa bacteriana já explicado. As mães que levam seus filhos ao dentista e amamentam, os levam depois de que dentes nascem, ou seja, depois dos seis meses de vida, época em que também se inicia a introdução alimentar e época em que os dentes podem começar a erupcionar. Por isso, é importante diferenciar a amamentação dos hábitos alimentares e da escovação. Os papéis de cada um são diferentes sobre a saúde da criança. Para Maria Caroline, “hábitos alimentares não saudáveis para crianças associados a pobres hábitos de higiene são fatores cruciais no aparecimento de cárie. Para um profissional menos atencioso, a conta da cárie fica no leite materno e na amamentação noturna, não levando em conta esse importante fator”.
Amamentação não dá cárie
O leite materno é energético, nutricional e imunológico, mantém o crescimento e desenvolvimento normais, melhora o processo digestivo no sistema gastrointestinal, favorece o vínculo entre mãe e filho e promove o desenvolvimento emocional, cognitivo e do sistema nervoso. Por que ele provocaria cárie? Com propriedades bacteriostáticas e antibacterianas, ele impede a proliferação de bactérias patogênicas na boca. Maria Caroline também explica que ele não é capaz por si só de provocar alteração do pH da placa a um nível crítico a ponto de dissolver o esmalte, justamente por não ser um alimento rico em substrato e com capacidade de formar uma matriz que propicie a adesão das bactérias na biopelícula.
Além disso, a amamentação, na ausência de uso de bicos artificiais, diminui os riscos de disfunções respiratórias e orais, incluindo o risco, por exemplo, de a criança tornar-se um respirador bucal. “A respiração bucal faz com a boca fique mais seca, sem a proteção da saliva que banha e limpa os dentes (propiciando o desenvolvimento de doenças como a cárie e a periodontite), além de aumentar o risco de infecções do trato respiratório. Infecções do trato respiratório aumentam as chances do uso de medicamentos açucarados, o que aumenta os riscos de descontrole da flora e do aparecimento de doenças bucais. Os bicos artificiais promovem também crescimento anormal dos ossos maxilares e consequentemente pode ocorrer apinhamento dental, o que dificulta a higiene, facilitando o aparecimento de doenças relacionadas”, explica Maria.
Para complementar, o tempo de aleitamento materno exclusivo e de aleitamento materno é maior em mulheres com maior escolaridade, de modo que a higiene dental é mais adequada nesse grupo; contrariando o que se observa com a prevalência de cárie, mais comum nas classes menos privilegiadas. Por isso, quem se beneficia com a manutenção da amamentação? Quem já possui mais renda e informação? Quem leva o prejuízo? As mães que não tem nem tempo, informação ou estrutura econômica e hábitos alimentares que promovam e protejam a saúde bucal da criança.
Também é fato que o aleitamento materno diminui com a idade, ao contrário do que ocorre com a predominância de cárie, demonstrando que a alimentação e a higiene bucal são fatores mais decisivos sobre a cárie do que o leite materno. Em Aleitamento Materno e Cárie do Lactente e do Pré-escolar: uma Revisão Crítica, os autores explicam que estudos demonstraram que o leite materno diminui o risco de aparecimento de doenças, tais como gastrenterite, infecções, asma, doenças atópicas e diabetes melito, as quais também têm influência na nutrição da criança. Logo é de se pressupor que o leite materno poderia proteger contra a cárie, pelo menor aparecimento das doenças que contribuem para a fisiopatologia da doença e pela menor utilização de medicamentos de risco à carie.
Por conter uma mistura de oligossacarídeos (várias ligações de açúcares monossacarídeos) complexa e única da espécie humana, presente em quantidades ínfimas em pouquíssimos mamíferos, o leite materno age no processo infeccioso, inibindo a adesão bacteriana às superfícies epiteliais. Por fim, foi demonstrado que o leite humano não é cariogênico, pois a placa dental formada por ele é diferente daquela formada pela sacarose. Além disso, com o leite humano não há perda mineral clinicamente visível no esmalte, contrariamente ao que acontece com a sacarose.
Hábitos alimentares e uso de bicos artificiais
No texto Mitos da Odontologia, a odontopediatra Andreia Stankiewicz é objetiva. “Repita comigo: amamentar não dá cáries. Há evidências substanciais que relacionam os hábitos alimentares à cárie dentária, sendo consenso geral que o aumento na sua incidência seja resultado do processo de civilização do homem, acarretando alterações nos padrões de vida mais naturais. Em povos que mantêm os hábitos de alimentação ancestrais, a prevalência de cáries é baixa. Entretanto, quando esses grupos entram em contato com a civilização moderna e seus hábitos alimentares, os índices aumentam drasticamente.
Segundo o Guia Alimentar para crianças menores de dois anos, do Ministério da Saúde, a dieta do lactente brasileiro é deficiente em ferro, monótona, com utilização frequente de biscoitos, espessantes, salgadinhos e açúcar, caracteristicamente alimentos de alta cariogenicidade. Além disso, a conforme explica Andreia, a sacarose (açúcar) é o alimento cariogênico mais importante e mais amplamente utilizado pelo homem. Tem o poder de transformar alimentos não cariogênicos e anticariogênicos em cariogênicos. Outros açúcares envolvidos na cariogênese são a glicose e a frutose, encontrado no mel e nas frutas. Uma simples exposição aos alimentos cariogênicos não é fator de risco para a cárie, e sim o frequente e prolongado contato desses substratos com os dentes.
“Particularmente, acredito que com a introdução dos leites artificiais oferecidos em mamadeira, as crianças passaram a apresentar mais cáries. O desconhecimento da fisiologia da amamentação e a confusão do aleitamento com o uso de mamadeira e leite artificial com a amamentação provocou tal mito. Nas faculdades de odontologia, a cárie do lactente é também conhecida como cárie de mamadeira, portanto, fica difícil compreender o surgimento do senso de que leite materno dá cáries, já que normalmente a maioria das crianças que tomam leite materno o tomam direto da fonte”, afirma Maria Caroline. O leite materno e o leite artificial são extremamente diferentes, tanto em aspectos imunológicos quanto probióticos.
Além disso, mamar no seio faz com que o leite seja ejetado no fundo da boca da criança (na junção do palato duro com o palato mole), por causa da elasticidade e anatomia do mamilo. “Dessa maneira, os dentes da criança não ficam imersos ou banhados no leite materno, o que desmente a teoria de muitos profissionais de saúde que o açúcar presente no leite materno favoreceria o crescimento da placa bacteriana e aumentaria o risco de cáries, principalmente nas crianças que mamam durante a madrugada (período em que a higiene não é realizada com frequência). Já na mamadeira, o bico não tem tanta flexibilidade e o leite é depositado justamente atrás dos dentes incisivos inferiores. Dessa maneira, o leite artificial banha os dentes e a cavidade bucal. O leite de vaca ou o leite em pó não tem os fatores protetivos do LM e muitos pais ainda têm o costume de adicionar engrossantes ou produtos com açúcares ao leite que vai na mamadeira da criança, aumentando assim o substrato para as bactérias, que combinados aos diversos fatores já relatados (local de depósito do leite, prejuízos dos bicos artificiais, diminuição do fluxo salivar durante a noite) aumentam o risco da cárie de mamadeira”, explica Maria.
Como evitar cáries na primeira infância
1. Amamente: a amamentação fortalece o sistema imunológico do bebê e previne uma série de doenças, inclusive na dentição;
2. Quando iniciar a introdução alimentar do seu bebê, opte por alimentos saudáveis, orgânicos e descarte processados. Uma alimentação natural contribui para a formação de um paladar saudável;
3. Evite bicos artificiais: a mamadeira e a chupeta não trazem benefícios para a dentição, tanto do ponto de vista da cárie como do ponto de vista da formação maxilar e da respiração;
4. Higienize de acordo com a idade do seu filho;
5. Consulte regularmente um odontopediatra (o pediatra não é o profissional a ser questionado acerca das dúvidas sobre a cavidade oral).
E agora, como escovar?
Enquanto o bebê é somente amamentado e existir a dentição, pode-se usar uma dedeira somente com água. A partir do momento que ele começa a comer, deve-se usar uma escova de cerdas macias e cabeça pequena. “A recomendação mais atual é usar uma pasta de dentes com concentração maior do que 1000 ppm de flúor, na quantidade de um grão de arroz cru, ao menos 1 vez ao dia”. Caso seja preferência dos pais, usar a pasta fluoretada com uma frequência menor, também ajuda na prevenção. Alguns pais se sentem desconfortáveis com o uso do flúor e preferem evitar o uso de pasta de dentes fluoretada até que a criança saiba cuspir. “Para esses pais, eu aconselho que reforcem a higiene da criança e sejam muito criteriosos na escolha de alimentos saudáveis, evitando açúcares, abusando de frutas, verduras, legumes, com muito leite materno em livre demanda”, finaliza Maria.
Até beijar o bebê previne a cárie
Quer saber mais? “A prevenção da cárie da infância envolve beijar o bebê, amamentá-lo, evitar a mamadeira (especialmente bebidas como sucos, chás, açúcar ou mel e as mamadeiras noturnas), evitar os doces e guloseimas, iniciar a higiene dental quando aparecerem os primeiros dentes e administrar flúor depois dos seis meses quando for adequado”, segundo o pediatra Carlos Gonzalez. O contato salivar entre a mãe e o bebê (através de beijos, por exemplo) desencadeia imunidade contra patógenos da saliva materna. Evidências mostram que bebês com mais contato salivar tiveram menos cáries nos caninos e primeiros molares decíduos (19% contra 56%), apesar de consumirem mais doces. Além disso, , segundo Andreia, estudos que controlaram fatores como idade, variáveis sociais, variáveis de saúde, variáveis comportamentais, variáveis relacionadas à higiene bucal, presença de placa visível e contaminação por Streptococcus mutans, comprovaram que a amamentação não foi um fator de risco para cáries. Idade, alto consumo de sacarose entre as refeições e a qualidade da higiene oral, sim.
Quanto mais velho e mais cercado de hábitos alimentares baseados no consumo de sacarose, mais cárie. Mais do que desmistificar a amamentação como responsável pela cárie, é importante repensar hábitos alimentares desde a primeira infância, a indústria de consumo baseada na alimentação processada, a aceleração de crescimento infantil por meio de engrossantes, personagens de desenho e processamento de alimentos (tornando a alimentação mais “ágil”). A AAPD (Academia Americana de Odontopediatria) não inclui mais o aleitamento materno entre os fatores de risco para cárie e não há comprovação científica de que o leite humano seja cariogênico, mesmo quando ingerido em livre demanda e durante a noite, período em que a amamentação é essencial para a criança se sentir segura e a produção se manter ajustada (nesse período acontece o pico de prolactina, principal hormônio do leite materno), necessidades que podem ser preenchidas. Libertem o leite materno.
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