Você certamente já ouviu alguém se referir ao cabelo crespo como "duro" ou "ruim". De tantas vezes repetidas, essas expressões se tornaram naturais quando saem pela boca. Pare para pensar: é ok dizer que o cabelo crespo é algo ruim por ser fenótipo de uma raça? Por que tudo que é característica das pessoas afrodescendentes é tido como nojento, de mal gosto, inferior? Eu sou negra e meu cabelo não é ruim, nem duro. Ele nasce assim, é macio, limpinho e não faz mal a ninguém.
Assumir o cabelo crespo ainda é difícil em um país que estimula processos de embelezamento para mulheres que não são brancas, magras, altas, com traços finos e cabelos lisos. Ultimamente, tem se falado muito de transição capilar, de produtos para cabelos cacheados/crespos e aos poucos eles estão aparecendo mais nas ruas, na televisão, em revistas e até em bonecas. Se trata de oportunismo comercial e midiático? Também, mas poder se ver representada nos rótulos de produtos, nos anúncios e em tantos outros espaços, é uma vitória conquistada com anos de luta. E essa luta por igualdade não está nem perto de acabar.
Além de estar nas estruturas e raízes do nosso país, o racismo se apresenta de várias formas, a maioria das vezes, disfarçado de opinião. Certa vez, no trem, sentei-me ao lado de uma mulher que, imediatamente, começou a bufar em protesto. Ela se levantou e estava visivelmente irritada. Perguntei se algo a incomodava. Disse a moça que sim, que o meu cabelo encostava nela e isso era nojento. Mal pude acreditar no que acabara de ouvir. Respondi: “Não tem do que ter nojo! Está limpo”. Antes de se afastar, ela retrucou: “O meu cabelo também, mas eu tenho a educação de não deixar ele… assim”.
A situação me fez pensar o quanto as meninas de cabelos crespos têm de tolerar. Os olhares tortos e os comentários desagradáveis são extremamente desestimulantes para quem não desenvolveu segurança com sua própria imagem, ou está passando por transição capilar. Eu nunca cheguei a fazer uma progressiva, mas claro que nem sempre me senti bem com meu cabelo. Eu o mantinha preso e ficava muito incomodada quando alguém fazia qualquer comentário, mesmo que positivo. Vivi um longo conflito interno: eu queria meu cabelo natural, mas não me sentia à vontade com ele. Achava bonito em outras mulheres, mas tinha medo de chamar muita atenção.
Não sei qual foi o momento exato, mas aprendi a me amar por inteiro, encontrei minha identidade e dei um basta em todos os receios. Foi por isso que o comentário da moça no trem não me atingiu pessoalmente: não pensei em prender meu cabelo e baixar a cabeça. Fiquei muito comovida e revoltada sim, mas por toda uma classe de mulheres negras que usam seu cabelo com resistência.
Amiga dos tempos de escola que sustenta um black power maravilhoso, Bruna Nazário conta que uma colega de trabalho disse que tinha dó dela por não ter o cabelo liso. “Meu cabelo foi o primeiro passo que tomei para começar a me aceitar do jeito que sou, abriu portas que eu mesma trancava. Quando libertei meu cabelo eu comecei a aceitar tudo que antes eu via como defeito em mim. Hoje eu realmente me vejo como dona do meu corpo. Amo meu cabelo porque na verdade eu descobri que ele não precisa ser só de um jeito. Que ele pode ser liso, crespo, que eu posso fazer box braids nele... ”, diz Bruna.
Também se trata de uma questão de inspirar, de incentivar, de ser exemplo para outras mulheres. É incrível quando você encontra outra garota de cabelo crespo na rua e vocês automaticamente se identificam, as vezes a gente até sorri, como se fossemos amigas, mesmo sem nunca termos nos visto antes. “Eu lembro bem quando comecei a circular pelo centro de São Paulo e notei algumas pessoas de cabelo crespo para o alto como coroas. Pensei: que lindo. Estou vendo mesmo isso? Fiquei encantada”, conta a empreendedora Ana Procopio (SP), 35. “Eu nunca me identifiquei com cabelos lisos. Ao iniciar a transição capilar, a única coisa que me assustou foi não saber como era a estrutura do meu cabelo – porque eu não lembrava. Mas quando vi as coroas me encantei e me reencontrei abandonei de cara tudo, vendi secador, prancha, babyliss e fiz big chop estava livre. Quando me vi livre, a minha postura influenciou todos da minha casa: irmãos, mãe, pai todos se espelharam em mim para abandonar seus procedimentos e viver em paz com o cabelo”.
Na escola, muitas pessoas costumavam me elogiar e dizer que eu era corajosa de manter meu cabelo natural, que elas alisavam para parecerem mais arrumadas, porque não conseguiriam ir a uma entrevista com um visual tão ousado, porque não é adequado a situações formais, a bons empregos e festas elegantes. E esse pensamento tem que ser combatido, dizer que um cabelo crespo não é adequado à uma situação, é uma forma polida de dizer que uma pessoa negra não é bem-vinda ali.
A universitária Janira Neta Silva (PB) passou pela transição capilar em 2014, aos 19 anos. “Depois de 10 anos com química, ouvia das minhas amigas que eu deveria deixar o cabelo natural, que iria ficar lindo. Mas, como boa parte das mulheres que alisam o cabelo, eu achava que o crespo não combinava comigo – isso mesmo, eu achava que o meu próprio cabelo não encaixava em mim. Estava numa fase em que fazia a progressiva todo mês, porque não poderia ter um dedo de raiz natural na minha cabeça. Não saia de casa sem chapinha, perdia banhos de piscina, de mar e vivia com a cabeça machucada de tanta química. Uma vez, demorei mais para fazer a progressiva, uns 3 meses e comecei a pesquisar vídeos sobre texturização. Passei a usar o cabelo com aqueles cachos feitos com folhas de jornal e me achava maravilhosa. Até que eu percebi que tinha saído da ditadura do liso pra entrar na do cabelo cacheado. Com uns 4 meses sem progressiva e com a raiz super pequenininha resolvi cortar toda a parte lisa. Me senti livre”.
Quando Janira fez o “big chop”, sua mãe ficou dias sem falar com ela por dias e seus irmãos fizeram piadinhas. Ter cabelo crespo é sempre ouvir que seu cabelo é duro, ruim, engraçadinho, que tampa a visão das pessoas e isso pode acontecer até dentro de casa, mas faça isso por você, não pelos outros. “Meu cabelo é meu maior orgulho. Me conheci de verdade depois de assumir ele. Minha família é totalmente branca. Mas meu avô materno é negro da pele escura e é o meu maior orgulho. Eu fui a única que nasceu com as características dele. Tenho um pai que sempre pensou que eu era adotada por ser a única negra entre meus irmãos e com a transição percebi que não tenho que me embranquecer para parecer com aquela parte da família. A história que meu avô negro carrega com ele é de luta, resistência, força. Isso que me inspira e me ensina a ser alguém melhor”.
Apesar dos ataques de intolerância pelas mídias sociais, (sabe a Maju Coutinho? E Taís Araújo?), a internet também é refúgio. Grupos de mulheres negras se juntam e compartilham experiências, fazem encontros e se unem para tornar suas vozes mais ouvidas. Blogueiras e youtubers negras servem de inspiração para o fortalecimento mútuo nesse resgate da ancestralidade e jornada de empoderamento coletivo. Só quem sofre isso tudo na pele entende a verdadeira importância da discussão, porque nós conhecemos as pequenas humilhações da infância, os medos, o peso de ser quem você é. E isso serve como motivação.
Janira lembra que sempre que pensamos em cabelo natural, pensamos na nossa beleza, que iremos ficar feias, chamativas ou que não iremos combinar com cabelo curto, ainda mais se formos gordas ou com o rosto mais arredondado e também por medo do que todas as pessoas irão pensar ou falar sobre a mudança. Mas é o nosso cabelo, nossa identidade. Muitas de nós nem conhecemos o cabelo que temos, as características, os detalhes e isso é muito triste.
Somos todas lindas, nossos cabelos são todos lindos de uma forma única. “Eu sou completamente apaixonada pelo meu cabelo. Muito amor sim. Toda vez que fico fazendo um cafuné nele, lembro de tudo que passei e como me tornei melhor depois dessa minha mudança e em como posso ser inspiração para crianças que passam pela mesmo coisa. Meu cabelo crespo é resistência, desconstrução, força e muita luta”, conclui Janira.
Para nós, negras, é extremamente importante a aceitação da negritude, abrace e celebre sua beleza tão menosprezada, afinal, como vamos combater o racismo da sociedade se não conseguimos nem nos olhar no espelho? Eu amo meu cabelo crespo pelo que ele representa, não só para a minha vida, mas para a garotinha de cabelo alisado que apontou para mim na rua e disse para mãe que queria deixar o cabelo assim. Não quero que ela se sinta impotente, que não se conheça de verdade por estar o tempo todo se reprimindo por pressão da sociedade. Nossas histórias são sempre parecidas e isso não pode se repetir nas próximas gerações, quero poder transmitir minha segurança para mais meninas, para que elas não passem pelo que eu passei e aprendam a se amar desde pequenininhas.
E você, ama seu cabelo?
Texto escrito por @compergeovana e editado por @cicaarra